Nosso trabalho é parte importante do que faz existir a universidade pública. Mas com quem a fazemos? E para quem? Essas perguntas, que nos conectam a várias gerações de lutadores pelo direito universal à educação, precisam ser respondidas sempre, e mais ainda quando temos de tomar decisões graves, como agora.
A palavra crise ficou pequena para descrever o que se passa. Um desastre sanitário sem precedentes se expande por todo o mundo e já se contam aos milhões os que foram atingidos, mas todos sabem que os números oficiais registram apenas uma parte da realidade pavorosa. Meio milhão de vidas ceifadas, mais de 70 mil no Brasil, muitos por falta de assistência adequada – pois nosso SUS opera nas condições a que foi reduzido após décadas de sucateamento. O vírus não faz distinção de classe, de raça, de gênero e etc, mas os sistemas de saúde, sim.
A pandemia desabou sobre um mundo que já sofria com as consequências de uma grande e duradoura recessão econômica, com efeitos devastadores sobre os que vivem do trabalho. Para preservar o capital de sua autodestruição, seus guardiões, agindo em escritórios empresariais ou estatais, aperfeiçoam e aprofundam as expropriações e a exploração, preservam os privilégios de pouquíssimos às custas do sacrifício de quase todos. Pretendem que o mundo e a vida lhes pertençam. Como na metáfora, já antiga, do filme Titanic, desde que os “melhores” se salvem, não importa o naufrágio e a morte dos outros.
No Brasil, como se duas catástrofes fossem poucas, ainda temos o governo Bolsonaro, síntese grotesca e violenta entre o desprezo pela vida e o massacre dos trabalhadores, cuja mescla de perversidade e incompetência para gerir o país traz como principal consequência o alargamento das curvas de contaminados e mortos pela Covid-19, ampliando a dor de uma população já tão maltratada por gerações de políticos gananciosos e negligentes.
Nós, nas universidades públicas baianas, estamos completamente mergulhados neste pandemônio. Há anos nossos salários e orçamentos vêm sendo achatados por governos que cuidam da coisa pública a partir das determinações do poder econômico. Precarização é o que deriva dessa política. Quando veio a pandemia, suspendemos as atividades presenciais, medida de proteção prescrita por autoridades sanitárias no mundo inteiro, mas não paramos de trabalhar, inclusive somando o nosso esforço ao de tantas e tantos que procuram entender e como lidar com suas múltiplas faces. Pesquisas, atividades de extensão, orientações, publicações, reuniões de órgãos colegiados e de coletivos de estudos, organização e participação em eventos, palestras, mesas redondas… as universidades estaduais baianas suspenderam as aulas, mas não estão paradas. Superando como podemos as dificuldades geradas pela precarização, e agudizadas pela pandemia, seguimos desenvolvendo o nosso labor por meio do “trabalho remoto”.
A comunidade acadêmica, mais uma vez, é pressionada pelos ditames políticos, subsumidos aos interesses do capital, a retomar as atividades de ensino no contexto da pandemia. Contudo, os grandes conglomerados privados do setor da educação, que possuem forte interesse no ensino remoto, viram nesse movimento uma oportunidade para forçar o setor público a legitimar essa opção. Os governos federal e estaduais cedem a esta pressão, em virtude de seu alinhamento aos interesses do capital, e pressionam para que as universidades públicas se comportem dentro da mesma perspectiva. Este afã de responder à demanda do capital impede que se pontue as inconsistências expressas nas narrativas que invisibilizam as especificidades do ensino remoto e da EaD, vez que não são a mesma coisa, e envolvem perspectivas distintas de abordagem metodológica. Questões dessa natureza, quando banalizadas, impõem a descaracterização generalizada da educação superior pública, gratuita e de qualidade. O hibridismo (ensino remoto e EaD) proposto escamoteia uma normalidade fictícia que impõe a exclusão de discentes e a precarização do trabalho docente. O suposto compromisso social com as demandas sociais falseia a realidade de extremas desigualdades que sublima as diferenças socioeconômicas.
A pressão que nos empurra nessa direção vem travestida de palavras que deveriam ser sedutoras. “Protagonismo”: lançarmo-nos à frente e experimentar, antecipar e não esperar que outros, que não nós, abram caminho nesse terreno desconhecido. “Responsabilidade”: entregar alguma coisa em que se possa pôr o rótulo de aula, ensino, único produto de nosso trabalho que parece ter algum valor. “Pragmatismo”: viabilizar alternativas para retomar rotinas tão parecidas quanto possível com a normalidade, adaptarmo-nos assim ao que se impõe como incontornável.
Não nos seduzem os sentidos atribuídos a essas palavras. Buscar o conforto enganador de uma impossível normalidade numa situação absolutamente anormal não é pragmatismo, mas perigosa estupidez. Nossa responsabilidade nos compromete com a luta contra as desigualdades, em particular as educacionais, e em defesa de um dos mais poderosos instrumentos dessa luta, a universidade pública gratuita, de qualidade e de amplo acesso. O que deve nos ocupar por antecipação é o estudo das condições de biossegurança em nossos campi e a avaliação minuciosa das condições para o retorno futuro àquelas instalações. Nós não podemos secundarizar ou dissimular esses problemas reais para bancar uma fantasia pragmática de normalidade.
Enquetes e levantamentos feitos pelas instituições com discentes e docentes, a despeito de problemas sérios na metodologia e obtenção dos dados, constataram o que todos já sabíamos: um percentual significativo de professores e maior ainda de estudantes não têm como participar de atividades remotas regulares porque faltam-lhes os meios materiais ou, em razão da reorganização da vida cotidiana no contexto do isolamento social, o tempo e/ou espaço. Se as universidades estaduais baianas decidirem seguir nessa direção terá de ser sem eles. Oportunidades de ensino serão abertas, mas não para todos os que já tinham conquistado seu espaço nas nossas universidades. Será uma perversa contribuição ao aumento da exclusão, um golpe na luta histórica pela ampliação do acesso, uma traição aos princípios da universidade pública aos quais dedicamos nosso trabalho e nossa militância.
De nossa parte, lutaremos para que não seja assim. O valor do nosso trabalho não é indiferente ao modo como respondemos às perguntas: Com quem? Para quem?

#NinguémFicaParaTrás

Fórum das Associações Docentes das Universidades Estaduais da Bahia
ADUFS – ADUSB – ADUNEB – ADUSC 

17 de Julho de 2020

Via: Fórum das ADs.