Na madrugada do dia 31 de março para o 1º. de Abril de 1964, as tropas do Exército em Juiz de Fora (MG), sob o comando do General Olímpio Mourão Filho, entraram em marcha para depor o Presidente constitucional do Brasil, João Goulart. Aquele movimento golpista, urdido no interior da cúpula das forças armadas, contou com o apoio do Governo dos Estados Unidos, do grosso do grande empresariado, da maior parte da hierarquia do clero católico, dos principais meios de comunicação e de grande parte das classes médias, unidos em torno da consigna do combate à “ameaça comunista”, ao “populismo” e à “corrupção”. Assim se liquidou, não apenas um governo reformista, empenhado na promoção das “reformas de base” e da independência econômica nacional, mas também a nossa primeira experiência democrática (1945-1964), em que pese suas grandes limitações, dando início a vinte e um anos de ditadura empresarial-militar.
Durante esse longo período (1964-1985), centenas de brasileiras e brasileiros foram morta(o)s e desaparecida(o)s, milhares foram presa(o)s arbitrariamente e torturada(o)s e outra(o)s tanta(o)s se viram forçada(o)s a tomar o caminho do exilio. Além disso, os sindicatos de trabalhadores passaram a maior parte do tempo sob intervenção, as universidades conheceram a “caça às bruxas”, com a repressão ao movimento estudantil e as aposentadorias compulsórias de tanta(o)s professora(e)s e a imprensa que, ironicamente, em sua maioria havia apoiado o golpe, foi silenciada pela censura prévia. Mesmo algumas das lideranças políticas conservadoras que, inicialmente haviam encabeçado o apoio civil à derrubada de Goulart, acabaram tendo seus mandatos e diretos políticos caçados pelo regime que ajudaram a instaurar.
Passados quase sessenta anos, qual a importância de relembrar aquele fatídico 1º. De abril? Ora, infelizmente, a resposta tem de começar pelo fato de que, hoje, os militares, com seu sempre presente apoio civil, voltaram a ocupar o governo, empenhados em demolir 30 anos de democracia que, também com suas limitações, propiciaram conquistas inéditas ao povo brasileiro. O atual Presidente, o ex-capitão Jair Messias Bolsonaro, que, segundo as insuspeitas palavras do ex-ditador Ernesto Geisel, foi um “mau militar”, construiu sua trajetória política denunciando a democracia e cultuando a memória do regime de 1964, culminando naquele indigesto discurso, proferido em 17/04/2016, durante a destituição da ex-Presidenta Dilma Rousseff – não por acaso apoiada por muitos dos atores, econômicos sociais e políticos, que sustentaram o golpe de meio século antes -, no qual homenageou a memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra, um dos mais notórios torcionários dos porões da ditadura. Atualmente, cercado por generais, tão reacionários como ineptos, como Heleno e Cia, Bolsonaro recebe no Palácio outros ex-repressores, como o famigerado Major Curió, e dedica boa parte de seu tempo a caçar fantasmas vermelhos, enquanto o país se desfaz em meio à pandemia do Coronavírus.
Mas o simples fato de que um governo como esse, ainda que impulsionado por um juiz, agora oficialmente suspeito, e por uma enxurrada de fake news, tenha saído do veredito das urnas em 2018 é bastante revelador, justamente, dos limites de nossa última experiência democrática e da urgência da memória. Ao contrário de nossos vizinhos do Cone Sul, como Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai, o Brasil não processou nem condenou nenhum dos responsáveis pelas violações de direitos humanos durante a ditadura empresarial-militar. Nossa tímida Comissão Nacional da Verdade (2011-2014), que teve suas faculdades cerceadas de saída, já foi suficiente para provocar a ira dos militares e seus simpatizantes à paisana, os quais começaram a chocar então o ovo da serpente, cujos resultados podemos julgar agora.
Por um lado, no Brasil de hoje, há ainda uma grande parcela de nossa população, entre um quarto e um terço, a julgar pelas pesquisas de opinião, que segue sustentando esse governo e aderindo a seu sistema de valores e práticas. Por outro lado, para qualquer observador que não integre essa parcela, é mais do que evidente que os mitos, que a nossa transição pactuada deixou de pé, da integridade e competência das Forças Armadas caíram por terra. Os resultados genocidas da gestão Pazuelo à frente do Ministério da Saúde deram a nossos militares aquilo que haviam conseguido evitar nos anos 1980: sua versão local das Malvinas, sem os bombardeiros e canhões, mas com muto mais mortos, expondo até que ponto chegaram a inépcia e a dissolução moral de nossas casernas. Outro mito que o governo Bolsonaro se encarregou de demolir, particularmente caro aos fardados, era o de seu suposto patriotismo. Nunca se viu um governo tão vergonhosamente entreguista e empenhado em destruir nossas capacidades estatais, o que não deixa de ser um feito em país dependente, historicamente dirigido por elites de mentalidade colonial.
Por tudo isso, se chega a uma conclusão inarredável: a democracia não pode repousar sobre o esquecimento. Afinal, o passado silenciado e recalcado, volta a nos assombrar, sob formas novas, porém não menos monstruosas. Dado seu pendor conciliatório, as elites políticas brasileiras, grande parte das quais havia integrado as filas da ditadura, julgou melhor soterrar os conflitos, se negando a qualquer política de responsabilização e reparação. O resultado disso foi preservar, para amplas parcelas da sociedade, uma memória positiva da ditadura que, com a passagem do tempo e diante das insuficiências de nossa democracia, acabaria ganhando corpo e devorando o regime que evitou enfrenta-la.
Daí a importância, para reconstruir o Brasil, de não deixar impunes os crimes do Estado brasileiro, nem os de ontem, nem os de hoje. Isso não poderá esperar uma eventual derrota do atual governo nas próximas eleições gerais, e terá que envolver a luta continuada no âmbito da sociedade civil. Assim, é imprescindível denunciar as comemorações, oficiais ou oficiosas, do 31 de março como um acinte à nossa memória histórica, procurando impedi-las pelos meios legais cabíveis. Daí também a necessidade de questionar, e, quando possível, revogar todas as homenagens s figuras da ditadura, como é o caso do infame título de Doutor Honoris Causa, atribuído pela Unicamp ao Coronel Jarbas Passarinho. Por fim, é imperioso seguir denunciando a política negacionista do atual Presidente, sustentado pelas Forças Armadas, pelo que ela é: um genocídio perpetrado contra o povo brasileiro.
Inspiremo-nos no exemplo dos nossos irmãos argentinos, que resistiram as investidas revisionistas do ex-Presidente Mauricio Macri (2015-2019), quem questionou o número de 30 mil mortos e desaparecidos daquele país, e no último dia 24 de março, 45º. aniversário do golpe de 1976, inauguraram um novo espaço de memória, em um antigo centro de detenção e tortura em Las Flores, província de Buenos Aires. Lembremos também o saudoso Presidente do Uruguai, Tabaré Vásquez que, em seu último governo (2015-2020), afastou e puniu um comandante militar por um gesto de insubordinação, reafirmando o controle civil das Forças Armadas. Celebremos ainda o povo chileno que, em um plebiscito em outubro passado, decidiu por ampla maioria enterrar o legado constitucional de Pinochet, convocando uma Assembleia Constituinte, a ser eleita no próximo dia 11 de abril.
Miremos nossos vizinhos do Paraguai, que em recentes manifestações exigiram a saída do Presidente Mario Abdo Benitez, por seu descaso com a situação sanitária, não por acaso filho do secretário pessoal do general Alfredo Stroesssner. Por último, saudemos a iniciativa da Bolívia que, nas últimas semanas, prendeu a ex-Presidenta de facto Jeanine Áñez, alguns de seus ex-ministros e militares pelo golpe de Estado de 2019 que depôs o ex-Presidente Evo Morales e levou à morte cerca de 36 pessoas nos massacres de Sacaba e Senkata.
Oxalá, um dia possamos, aqui também, acertar as contas com nosso passado, de modo a construir um futuro melhor.
Por Verdade, Memória e Justiça!
Recordar para não repetir!
Texto elaborado por Prof. André Kaysel Veslaco Cruz – IFCH/Unicamp e 2º Secretário da ADunicamp
Diretoria ADunicamp
Via: ADunicamp